Antiviral que falhou contra o Ebola cura gatos com coronavírus da PIF
Diagnóstico da PIF (Peritonite Infecciosa Felina) é uma sentença de morte para esses animais
Por: Folha de São Paulo
Publicado em 08 de Julho de 2020 as 09:40 Hrs
Os gateiros sabem bem do que eu estou falando. O diagnóstico da PIF (Peritonite Infecciosa Felina) é, ainda hoje, uma sentença de morte para esses animais. Detectada a infecção, 95% dos gatos vivem de dias a poucos meses —e vivem mal.
Causada por um coronavírus (não transmissível aos humanos), a PIF tem basicamente duas caras. Uma é seca, pode levar à formação de granulomas inflamatórios que culminam na insuficiência de vários órgãos. Outra é úmida, causa o acúmulo constante de líquido no tórax ou no abdômen.
A boa notícia é que a doença está a um passo da cura. A má notícia é que o laboratório que criou o fármaco não quer licenciá-lo para uso em animais.
A molécula em questão é GS-441524, quase idêntica ao remdesivir, que foi inicialmente testado no combate ao Ebola. Os testes do remdesivir contra o Ebola falharam, mas veio a Covid-19 e ele ressurgiu como promessa.
Foi o suficiente para a Gilead Science, empresa que criou e patenteou as duas moléculas, continuar se recusando a licenciar o GS-441524 para uso em animais, alegando que isso pode interferir no processo de aprovação do fármaco-irmão (o remdesivir) para uso humano —liberado, por enquanto, apenas para casos emergenciais nos Estados Unidos.
Ainda restam oito anos de patente. E o impasse tem levado ao desespero os donos dos gatos doentes mundo à fora, que apelaram para o mercado ilegal de medicamentos, abastecido principalmente a partir da China.
Nas redes sociais há grupos fechados em pelo menos 36 países, alguns com milhares de integrantes entre tutores e médicos-veterinários, que tentam facilitar o acesso ao medicamento —mas o preço ainda é altíssimo, além do risco de embarcar na operação clandestina.
Para um gato de 3 kg, por exemplo, o tratamento de 12 semanas (que é o tempo mínimo) pode variar de US$ 5.000 a US$ 10.000, conforme a existência ou não de alterações neurológicas. O preço aumenta com o peso do gato.
A PIF afeta cerca de 1,3% da população mundial de gatos e o impasse é um claro exemplo no qual os interesses comerciais estão sendo colocado acima da preservação da saúde e da vida desses animais, sem falar do sofrimento das famílias às quais eles pertencem.
O remdesivir é alvo de diversos ensaios clínicos contra a Covid-19, mas o GS-441524 nunca teve segurança e eficácia testadas em humanos. Como, então, se sabe que funciona contra o coronavírus felino?
A ideia partiu de Niels Pedersen, 76, pesquisador da Universidade da Califórnia, que conhecia um ex-diretor científico da Gilead havia décadas, desde que ambos trabalhavam com primatas.
A Gilead é especializada no desenvolvimento de antivirais. Fez o Tamiflu, por exemplo, e uma série de medicamentos contra o HIV e a hepatite C.
Em meados de 2015, Pedersen pediu à Gilead que cedesse para o laboratório da universidade algumas moléculas que ainda estivessem em fase de teste. Recebeu dezenas delas. Duas funcionaram muito bem nas culturas de células felinas infectadas com o vírus da PIF: a GS-441524 e a GS 5734, hoje conhecida como remdesivir.
O GS-441524 e o remdesivir são análogos de nucleosídeos. Isso significa que eles imitam uma base nitrogenada (nesse caso, a adenina) e ocupam o lugar dela na montagem do material genético, durante a replicação viral. Ou seja: “falsificam” a matéria-prima do RNA e impedem a formação do novo vírus.
“A diferença entre os dois é que o remdesivir é a pró-droga —no organismo, ele vira GS-441524”, explicou Pedersen à Folha, em entrevista por e-mail. “Já existem muitas pessoas que agora acreditam que o GS-441524 deveria ter sido o medicamento usado em testes contra a Covid-19 em vez do remdesivir.”
Para os gatos, in vitro, as duas moléculas foram igualmente eficientes nas culturas de células infectadas com o coronavírus da PIF.
Os pesquisadores da Gilead foram coautores dos estudos conduzidos por ele com o GS-441524 na Universidade da Califórnia.
No principal deles, publicado em fevereiro do ano passado no Journal of Feline Medicine and Surgery, dos 31 gatos com PIF tratados por 12 semanas com o GS-441524, 25 deles estavam vivos e saudáveis 18 meses após o final das aplicações —um resultado nunca visto com nada que tenha sido testado contra o coronavírus felino. Hoje, já se passaram três anos do final do tratamento e eles seguem assintomáticos.
Parecia um sonho, mas virou pesadelo. O estudo havia sido concluído no meio da epidemia de Ebola, e a Gilead se recusou a licenciar o GS-441524 para o uso em gatos, com medo de que qualquer efeito adverso descoberto nesses animais pudesse impedir a aprovação do remdesivir pela FDA (Food and Drug Administration) para uso humano —o que significaria muitos bilhões de dólares a menos nas contas da empresa.
Pedersen classifica a decisão como “um golpe”. “Isso o atinge com muita força, especialmente quando você não vê nenhum motivo para isso”, diz ele. “Mas depois que o remdesivir receber a aprovação final, ele poderá ser prescrito regularmente pelos médicos, fora dos ensaios clínicos. Como os veterinários são basicamente livres para usar medicamentos humanos, ele também poderá ser legalmente prescrito para uso animal.”
Pedersen não fala sobre o mercado ilegal da droga. Educadamente, sugeriu que a Folha procurasse o FIP Warriors, a comunidade com mais de 22 mil membros no Facebook, para saber como e por quanto comprar o remédio.
Enquanto o impasse persiste, ele publica os últimos resultados de seus estudos. No final de maio, no Journal of Veterinary Internal Medicine, relatou o que viu ao tratar quatro felinos com sinais neurológicos da PIF —considerados os pacientes mais graves da doença. Um foi eutanasiado 216 dias após o início do tratamento, mas os demais seguem hoje vivos e saudáveis, mais de dois anos depois.
Para Pedersen, esses gatos estão curados. O problema agora não é mais pesquisa. É grana, é política, é interesse comercial.
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