Mesmo calado, Lionel Messi tenta impor sua vontade mais uma vez
Argentino avisou ao Barcelona que quer deixar o clube após 20 anos
Por: Folha de São Paulo
Publicado em 26 de Agosto de 2020 as 16:45 Hrs
Na calle Estado de Israel, uma rua estreita na parte sul da periferia de Rosário (298 km de Buenos Aires), Lionel Messi não é lembrado como um dos maiores jogadores de futebol da história. Ele será sempre a criança muito pequena que se agarrava na barra da calça do pai, Jorge, ao sair do sobrado em que a família morava.
"Ele tinha um jeito muito tímido. Não falava com ninguém, tanto que cheguei a pedir à mãe dele que o levasse a um psicólogo porque achei que sua autoestima era muito baixa. Mas logo percebi que, por causa do futebol, as outras crianças gravitavam em torno dele. E Leo costumava conseguir o que queria. Tinha uma vontade muito forte", disse a antiga professora de Messi, Mónica Dómina, à Folha, em reportagem de 2017.
Foi a mesma vontade imutável e silenciosa que o levou a fazer o que poucos em Barcelona acreditavam ser possível: avisar ao clube no qual chegou aos 13 anos de idade que deseja ir embora.
Ele se sente confortável na Catalunha, o Barcelona é como se fosse sua casa, seus três filhos nasceram na Espanha e o camisa 10 tem até um churrasqueiro particular na cidade.
Aos 33 anos, Messi viu que o Barça se tornou uma nau à deriva sob a administração de Josep Maria Bartomeu, uma pessoa que ele não suporta mais nem cumprimentar, de acordo com o que seu pai disse a jornalistas argentinos.
Além da Copa do Mundo pela seleção, ele sonha em voltar a ganhar a Champions League, torneio em que foi o astro da equipe espanhola nos títulos de 2009, 2011 e 2015. Porque, como observou o jornalista e biógrafo Leonardo Faccio, futebol é algo tão importante para Lionel que, quando fala do assunto, "o sorriso de sua cara se apaga e sua expressão se torna tão séria como quando vai bater um pênalti."
Com Pep Guardiola, seu técnico entre 2008 e 2013, houve um entendimento perfeito entre eles e o reconhecimento, por parte de Messi, de que Pep encontrou a melhor função para ele no campo, tirando-o da ponta direita e colocando-o no centro do ataque, onde sempre quis jogar. Se mostrou letal e foram campeões europeus duas vezes.
O argentino, transformado em emblema do time, cresceu ao ponto de se sentir mais à vontade em externar suas insatisfações no dia a dia, até mesmo com treinadores. No processo de escolha dos comandantes, inclusive, o tamanho dos técnicos passou a ser um ponto-chave, de modo que as personalidades dos novos contratados não conflitassem com a do principal jogador da equipe.
Luis Enrique admitiu que seu início de trabalho no clube provocou tensões com o jogador, que discordava de algumas ideias táticas propostas por ele.
Ao longo da temporada, apesar de jogarem de maneira diferente da que ele estava acostumado, com um futebol muito mais direto e vertical, Luis Enrique ganhou o respeito de Messi, que reconheceu no treinador uma figura capaz de potencializar não só o seu jogo, o de Suárez ou o de Neymar, mas de todo o coletivo.
O Barcelona terminou campeão da liga espanhola, da Copa do Rei e da Champions. O time nunca mais foi tão competitivo desde então no cenário europeu como aquele de 2014/2015.
Nas duas últimas temporadas, já como capitão, foi ele o responsável por dar uma satisfação aos torcedores durante o evento anual do troféu Joan Gamper, o torneio amistoso de apresentação do elenco no Camp Nou. Em ambas as ocasiões, o argentino prometeu que voltariam a levantar a taça da Champions, mas não pôde cumprir.
A perda de protagonismo no principal torneio de clubes do mundo, aliado ao fato de que Messi viu o vestiário ficar vazio de referências e confidentes, com Xavi e Iniesta deixando o clube e Neymar não conseguindo retornar à Catalunha apesar de sua vontade (e da de Messi), são algumas das razões pelas quais ele deseja tomar um novo rumo.
Sair do Barcelona é um passo que os diretores do clube não esperavam que daria porque vários deles conhecem o jogador e sabem que Messi é uma pessoa de hábitos, não gosta de novidades ou surpresas.
É o mesmo Lionel que disse ter desistido de assistir à série Lost porque "sempre aparece algo novo" e aquilo não lhe agradava.
Mas o desejo de fazer algo é mais forte. Aos 13 anos largou tudo em Rosário para morar em outro país, sem se despedir ou avisar ninguém na rua Estado de Israel. Antes mesmo de ir à Catalunha, ele já sabia o que queria, mesmo em assuntos banais.
Messi se recusou a ceder o assento no carro ao lado da janela para o amigo Leandro Gimenez após um teste no River Plate em que os dois se destacaram. O veículo era do pai de Gimenez e a briga fez com que o futuro astro ficasse sem lugar para dormir em Buenos Aires. Como o clube da capital não oferecia alojamento para crianças daquela idade, a transferência se tornou impossível.
É o mesmo Messi que no primeiro treino no Barcelona teve de explicar ao técnico exatamente qual era sua posição porque, quando questionado sobre como gostava de atuar, respondeu: "De enganche", falou, citando expressão que representa o camisa 10 argentino por excelência.
Atual chefe do departamento de scout do Barcelona, Álex García foi atleta de Johan Cruyff no famoso Dream Team do Barça e, quando se aposentou do futebol profissional, passou a trabalhar nas categorias de base do clube como treinador.
No início dos anos 2000, ele era o técnico da categoria Cadete A que reuniu Cesc Fàbregas, Gerard Piqué e Lionel Messi em uma mesma equipe. O argentino, tímido para falar, encontrou nas suas ações dentro de campo a forma para mostrar sua rebeldia.
"A única coisa que ele não gostava –e não dizia nada, mas podíamos notar em sua cara– era jogar fora de posição. Eu o movia por todas as partes do campo para que desenvolvesse suas aptidões. Mas ele não gostava. Depois de alguns minutos, aparecia pelo centro do ataque como ponta de lança. Você não conseguia pará-lo", conta García ao jornalista Luca Caioli no livro "Messi: El niño que no podía crecer".
Lionel Messi sempre quis fazer as coisas do seu jeito.
O burofax, documento enviado na terça (25) por seus advogados ao Barcelona informando o desejo de sair, tem um toque maradoniano, seu ídolo de criança, ao jogar os torcedores contra os dirigentes que ele detesta.
Em nível e circunstância diferente, foi o que Maradona fez na Copa do Mundo de 1990, na Itália, quando tentou jogar a população italiana do sul contra a do norte.
Ao dizer que "o norte não os considera italianos, dizem que vocês são pobres, sujos, mas agora querem que vocês torçam pela Itália", ele deixava implícito que os sulistas deveriam torcer por ele, um deus de Nápoles que desafiava os clubes nortistas.
"Ele chegou perto de mim e disse: 'Veja agora a confusão que vou armar'", relembra o ex-zagueiro da seleção Oscar Ruggeri.
É uma forma de manipulação para alcançar um objetivo e fazer sua vontade. Algo que Lionel Messi conseguiu bem à sua maneira. Sem dizer uma palavra.
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