Após 13 anos em queda, hanseníase volta a crescer no Brasil
Mato Grosso foi o estado com maior salto de diagnósticos, 76% em dois anos
Por: Folha de S. Paulo
Publicado em 13 de Julho de 2019 as 08:44 Hrs
Raimundo Nonato do Nascimento, 48, descobriu que tinha hanseníase há seis anos. Mas, durante três anos, ele acreditou que tinha outra doença. A demora para o início do tratamento o deixou com sequelas: a perda da sensibilidade na mão esquerda e em 70% do corpo.
Hoje, curado da hanseníase, ele continua lutando contra a incapacitação e o preconceito. Também luta para seguir o tratamento. Quando precisar fazer a viagem de ônibus até um dos hospitais da rede Hora Certa, na zona Sul de São Paulo, ele diz acordar nervoso porque sabe que precisará explicar às pessoas no transporte coletivo seu direito ao uso do assento preferencial. Mesmo conversas banais com passageiros geram apreensão.
“Um dia uma senhora sentou do meu lado, começamos a conversar. Quando disse que fazia tratamento porque tive hanseníase, ela disse ‘nossa, isso pega’ e saiu de perto. Isso deixa a gente triste né?”.
A doença não só ainda é alvo de muito preconceito como tem crescido. Segundo o Ministério da Saúde, 28.657 pessoas receberam o diagnóstico da doença em 2018. Em 2016, foram 25.214, um crescimento de 14% em dois anos após mais de uma década de queda.
Para Mauricio Lisboa Nobre, dermatologista e hansenólogo assessor do Programa Nacional de Controle da Hanseníase, o aumento mostra que ações pontuais do governo brasileiro para detectar novos casos em áreas com maior manifestação da doença foram efetivas, mas que o sistema falha em manter uma rotina de prevenção.
“É uma falha do sistema de saúde de conseguir manter a cobertura de comunicantes [pessoas que vivem com doentes sem tratamento] na rotina de trabalho diário. Nossa estrutura de saúde é desenhada para que os profissionais estejam inseridos na comunidade, mas na prática essas equipes não conseguem atingir um alto nível de exame de comunicantes”, diz.
Marco Andrey Sipriani Frade, professor de dermatologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, também aponta falhas na prevenção e mesmo no diagnóstico. Ele afirma que os estudantes de medicina são pouco treinados para reconhecer a hanseníase e acabam dependentes de exames complementares.
“Médicos recém-formados não se sentem confiantes para fazer o diagnóstico. Transferem toda a responsabilidade para exames complementares, mas não podemos ficar dependentes disso porque em média 50% dos casos têm resultado negativo mesmo que a pessoa esteja doente.”
Segundo profissionais ouvidos pela reportagem, o resultado negativo nos exames aparece porque a hanseníase só é detectada em exames quando está em estágio avançado. Há dois tipos de manifestação da doença: o paucibacilar, onde há baixa presença de bacilos e a hanseníase não é transmitida, e o multibacilar, quadro agravado da doença em que pode haver transmissão caso não haja tratamento.
Em 2017, o Ministério da Saúde fechou parceria com a OMS (Organização Mundial da Saúde) e com uma organização japonesa, a Fundação Nippon, para lançar o projeto “Abordagens Inovadoras para intensificar esforços para um Brasil livre da Hanseníase” em 20 municípios de Maranhão, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Piauí e Tocantins.
O programa, previsto para acabar neste ano, pode ajudar a explicar o aumento na detecção de casos nesses estados. Com exceção de 2016, o crescimento em 2017 e 2018 coincide com o início do projeto.
No entanto, o segundo estado com maior número de novos casos, Rondônia (alta de 56%), não faz parte do programa. O mesmo acontece com outros estados que tiveram alta entre 27% e 35%, como Paraíba, Rio de Janeiro, Alagoas, Rio Grande do Norte e Roraima.
O Ministério da Saúde vê o crescimento de 14% entre 2016 e 2018 positivamente porque o dado, segundo o órgão, mostra que o SUS está mais apto para detectar a doença.
Para Gerson Fernando Mendes Pereira, diretor do Departamento de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis da pasta, os dados apontam alta porque há subnotificação e um trabalho ativo para detecção.
Ele afirma que as melhores formas de prevenção são a vacinação e o acompanhamento das pessoas que convivem com pacientes. Quanto ao combate à discriminação das pessoas afetadas pela hanseníase, o diretor disse que o ministério faz o que pode.
“Hoje, nós fazemos a campanha Janeiro Roxo. O papel do ministério é informar. Queremos fazer campanhas a cada três meses divulgando sintomas e que o tratamento impede a transmissão, mas tem esse estigma que fica”, afirma.
TRANSMISSÃO
Bactéria
A bactéria que causa a doença é a Mycobacterium leprae, transmitida pelas vias aéreas por pessoas infectadas e não tratadas.
Incubação
O período de incubação varia de seis meses a sete anos.
Contágio
A transmissão é bloqueada já após as primeiras doses dos remédios.
SINTOMAS
Manchas brancas ou vermelhas no corpo
Perda ou alteração de sensibilidade ao calor e frio, ao tato e à dor
Sensação de choque, formigamento e fisgadas nos braços e pernas.
Caroços avermelhados e doloridos no corpo.
Entupimento, sangramento, feridas e ressecamento do nariz.
Ressecamento nos olhos
PROGRESSÃO
Grau 0
Não há sequelas
Grau 1
Perda da sensibilidade nos olhos, mãos e pés
Grau 2
Mãos e pés em garra, perda óssea, pé caído, incapacidade de fechar os olhos, córnea opaca
Grau 3
Mão caída, articulações imobilizadas, contrações musculares involuntárias, perda de visão e redução da massa óssea
INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
Na década de 1940, o governo passou a internar compulsoriamente pessoas com hanseníase em hospitais-colônias. Os filhos dos pacientes eram enviados para preventórios, orfanatos destinados a “prevenir” que a doença se espalhasse. A prática era comum e só foi erradicada por volta de 1986, uma década após a internação ser proibida por lei.
Na época, ainda não se sabia que o contágio requer exposição prolongada ao bacilo. Além disso, o preconceito agravava a situação, porque a hanseníase era vista como um castigo ou maldição.
O Morhan (Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase), fundado em 1981, busca na Justiça o direito a indenização de filhos tirados do convívio com os pais e daqueles que nunca chegaram a conhecê-los porque foram separados após o parto e direcionados para adoção.
Para o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, mesmo após tantas décadas, o Ministério da Saúde não tem programas eficazes de combate à discriminação das pessoas afetadas pela doença.
Um projeto de lei busca obrigar o Estado a indenizar os descendentes dos ex-internos. Criado em 2011, o PL 2104 pouco avançou e foi arquivado duas vezes, mas, em fevereiro de 2019, foi desarquivado e voltou a tramitar.
Apesar do entrave na indenização de filhos de ex-pacientes, o Brasil é um dos dois únicos países no mundo —o outro é o Japão— a indenizar as pessoas que foram internadas compulsoriamente. Isso foi possível por meio da lei 11.520 de 2007, que prevê pensão especial às vítimas da antiga política de Estado.
De acordo com dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, cerca de 9.000 pessoas já recebem a pensão e outras 3.500 aguardam o trâmite do processo.
Segundo Josué Ribeiro Costa da Silva, coordenador geral da Comissão Interministerial do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos que avalia as pensões, a questão já está definida.
“A novidade é a indenização dos filhos das pessoas que foram internadas à força. Minas Gerais foi o primeiro e único estado que aprovou isso, mas a comissão lá ainda está começando os trabalhos. Em todo o Brasil, estima-se que sejam 20 mil pessoas”, diz.
O Japão saiu na frente e no dia 9 de julho de 2019 se tornou o primeiro país do mundo a conceder a indenização aos dependentes de ex-pacientes. Além de ter privado filhos do convívio com os pais, o governo japonês obrigou mulheres grávidas com hanseníase a abortar e esterilizou os homens.
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